Compra racionada irrita consumidores na Venezuela

24/10/2014

Em meio a um agravamento da escassez de produtos básicos, a Venezuela cruzou recentemente uma nova fronteira de subdesenvolvimento: o país juntou-se às fileiras da Coreia do Norte e Cuba e começou a racionar alimentos para a população.

 

Há pouco tempo, em uma manhã quente, Maria Varge esperava na fila do lado de fora de um supermercado da rede Centro 99, pronta para vasculhar as prateleiras em busca de itens escassos, como óleo de cozinha e leite. Mas, antes de entrar, Varge teve que confirmar sua impressão digital em um escâner para garantir que ela não compraria mais do que a porção a que tem direito.

 

Apesar do toque tecnológico dado à velha caderneta de racionamento, o novo programa imposto pelo governo venezuelano está enfurecendo os consumidores, que reclamam que o sistema cria esperas longas e cansativas, não alivia a escassez e não abre as portas para o pacote de reformas econômicas mais amplas de que o país tanto necessita para resolver a crise.

 

"Essas máquinas criam filas mais longas", afirma Varge, 50 anos, enquanto é empurrada por outras pessoas na fila. "E quando você entra, eles ainda não têm o que você quer."

 

O governo lançou o sistema no mês passado em 36 supermercados no Estado de Zulia, cuja capital é Maracaibo. Uma expansão recente também levou o programa para um número seleto de supermercados estatais em Caracas.

 

A Venezuela decidiu adotar o racionamento por causa da escassez causada por aquilo que os economistas chamam de uma mistura tóxica, com uma indústria local improdutiva - prejudicada por nacionalizações e intervenções do governo - e um regime cambial complexo que é incapaz de fornecer os dólares que os importadores precisam para pagar pelos materiais mais básicos.

 

A queda nos preços do petróleo da Venezuela, cujo barril custava US$ 77,65 na sexta-feira passada, quase US$ 15 a menos do que em setembro, provavelmente irá causar ainda mais escassez num país cujos cofres se esvaziam rapidamente, dizem economistas.

 

Segundo pesquisa recente realizada pela firma venezuelana Datanalisis, apenas 30% do nível normal de bens básicos cujos preços são controlados pelo governo estavam disponíveis em um grupo de supermercados em Caracas.

 

"O governo é quem está permitindo que os problemas floresçam", diz Eliseo Fermín, um deputado estadual da oposição do Estado de Zulia. Segundo ele, agora é o cidadão comum quem arca com o problema.

 

Pelo sistema em vigor, itens básicos que têm preços controlados - incluindo leite, arroz, café, creme dental, frango e detergente - são racionados e a máquina de impressão digital é usada para garantir que um cliente não fique voltando às compras para estocar os produtos. Isso significa que os consumidores podem comprar até 2,2 quilos por semana de leite em pó, que localmente é chamado de "ouro" devido à sua raridade.

 

As autoridades venezuelanas culpam contrabandistas pela escassez, acusando-os de comprar produtos com preços controlados aqui para vendê-los por um lucro considerável na vizinha Colômbia.

 

Embora os economistas estimem que cerca de 10% dos produtos de consumo venezuelanos acabem na Colômbia, o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, diz que o total chega a 40%. Ele impôs o fechamento de postos de controle ao longo dos mais de 2.000 quilômetros de fronteiras durante a noite para conter o fluxo. E uma repressão aos traficantes levou à prisão de consumidores que, segundo as autoridades, estariam planejando vender suas compras na Colômbia, dizem os policiais de fronteira.

 

"É da responsabilidade de todos se unirem contra o contrabando", disse o governador de Zulia, Francisco Arias, do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), de Maduro, recentemente em um programa de TV. Ele e outras autoridades dizem que a leitura de impressões digitais impede a compra de grandes volumes para revenda de forma mais eficaz do que a exigência da apresentação de documentos de identidade pelos compradores, um método que é usado para controlar e limitar as compras em algumas lojas de Caracas.

 

Muitos economistas afirmam que o fim de controles cambiais e de preços, além da eliminação de restrições sobre os produtores locais, poderia aliviar a escassez.

 

Recentemente, nos supermercados de Maracaibo, consumidores irados esperando numa fila comentavam sobre a ironia da situação: a Venezuela, um país que acumulou US$ 114 bilhões em vendas de petróleo no ano passado, tendo que racionar papel higiênico.

 

"Quase me dá vontade de rir, mas não posso", disse Nayibi Pineda, que trabalha como camareira em um hotel. "Como é possível que o nosso país tenha chegado a esse extremo?"

 

Clientes dizem que a espera na fila pode chegar a mais de cinco horas, um atraso que eles atribuem a máquinas defeituosas de checagem de impressão digital.

 

"Passei horas em pé na fila, sofrendo sob o sol", reclamava aos prantos Luzmarina Vargas, vestida com uma túnica cor-de-rosa típica dos índios wayuu da região.

 

Salvador González, o diretor de Finanças do Estado Zulia, que supervisiona as máquinas, disse que as autoridades estavam exigindo que as máquinas fossem instaladas em cada ponto de verificação para encurtar as filas. Os supermercados devem arcar com o custo das máquinas, em torno de US$ 150 cada uma. "Nosso objetivo é garantir comida barata", afirmou ele em entrevista ao "The Wall Street Journal".

 

Mas as máquinas de impressão digital - e a escassez de bens básicos - irritam consumidores, que também têm que lidar com o racionamento de água e gasolina.

 

"Se não consigo encontrar fraldas descartáveis, eu uso as de pano", afirma Rosa Fernandez, mãe de um bebê, explicando que, para comprar as fraldas, ela tem para mostrar ao funcionário do caixa a certidão de nascimento do filho. "Mas aí não consigo encontrar detergente [para lavá-las]. E, se encontro detergente, falta água", diz.

 

Fonte: Valor Econômico