DE QUE LADO ESTAVAM ELIS E GAL?

09/11/2022


Elis Regina e Gal Costa em 1981 FOTO THEREZA EUGÊNIA/DIVULGAÇÃO




Na ditadura militar que marcou a história do Brasil, vozes como as das cantoras Elis Regina e Gal Costa foram cruciais. É o que analisa Renato Contente no livro ‘Não se assuste, pessoa!

 

 

Artistas não são super-heróis, mas possuem um poder que também implica grande responsabilidade: o de tornar as coisas visíveis. Após tentarem se omitir diante da tragédia sociopolítica que o Brasil atravessa hoje, celebridades como Juliana Paes e Claudia Leitte mostram o quanto a fama exige também compromisso com o público. Afinal, para que serve o prestígio quando milhares de brasileiros morrem por conta de um governo criminoso e incompetente? Durante a ditadura militar (1964-1985), as cantoras Gal Costa e Elis Regina já respondiam essa pergunta preparando discos e espetáculos que buscavam acolher as dores dos brasileiros e conscientizar os desavisados. É o que mostra o livro Não se assuste, pessoa! – As personas políticas de Gal Costa e Elis Regina na ditadura militar, do jornalista e sociólogo pernambucano Renato Contente, publicado pela editora Letra e Voz neste ano. 

 

“São duas trajetórias muito importantes dentro da Música Popular Brasileira, porque são muito sensíveis e ligadas a essas movimentações e sentimentos coletivos”, observa o autor. Da baiana, ele analisou as obras Gal Costa (1969), Gal (1969), Legal (1970) e Fa-tal – Gal a todo vapor (1971); da gaúcha, Falso brilhante (1976), Transversal do tempo (1978) e Saudade do Brasil (1980). “Eu acho que os artistas podem aprender com elas, de maneira muito clara, a importância de ser um canal de expressão do seu tempo, de usar a arte como um veículo pra expressar os sentimentos do tempo vivido em termos políticos, objetivos e emocionais. Isso continua comunicando de maneira muito forte e ajuda a gente a entender algumas coisas do passado e também a se situar no presente. Assim podemos identificar como as coisas se repetem e de que maneira elas se repetem”, explica. 

 

Em tempos de fake news como vivemos hoje, não é preciso decreto de censura para assistir novamente ao governo manipulando o povo. Talvez por isso versos como “é preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”, de Divino maravilhoso, ainda funcionem como denúncia tanto quanto em 1968, quando Gal Costa apresentou a canção no IV Festival da Música Popular Brasileira, sob vaias e aplausos. Poucas semanas após o episódio, foi promulgado o AI-5, que suspendia direitos humanos primários e as liberdades individuais. Nesse contexto, Caetano Veloso e Gilberto Gil, autores da música, foram presos sob a falsa acusação de terem desrespeitado o hino nacional e a bandeira brasileira e, mesmo sem quaisquer provas do “crime”, foram enviados para o exílio em Londres, onde ficariam até 1972. 


Renato Contente aponta a saída dos dois compositores como um marco na carreira de Gal. A partir daquele momento, ela encosta ainda mais os valores contidos da bossa nova e dá mais vazão à emoção, assumindo o papel de porta-voz não só dos amigos exilados, mas também de toda a juventude aplacada pela truculência do regime militar. Um dos aspectos mais interessantes destacados no livro é a autonomia artística de Gal e Elis, que tiveram a iniciativa de construir uma narrativa política – de maneira intuitiva ou planejada – através dos discos estudados, selecionando músicas e compositores que traduziam anseios coletivos na ocasião. 

 

Essa observação derruba por terra a ideia de que as duas intérpretes apenas reproduziam referências passivamente. Na prática, até a forma como elas escolhiam cantar e apresentar as músicas acrescentava sentido às letras e as situava como autoras de suas próprias obras. Gal, por exemplo, deixa isso evidente nas entrevistas que concedeu desde o primeiro momento de sua fase mais aguerrida, dizendo à época que a sua mudança artística aconteceu de forma “tão forte e violenta que não poderia ter sido feita por pressão de ninguém”. Essa independência também a leva a se afastar do tom político, mesmo a contragosto de Caetano, a partir de Índia (1973), quando começa a buscar canções que destacam mais o seu canto. O autor defende que esse último trabalho conclui o papel de Gal como principal representante da “canção dos anos de chumbo” (1969-1974) e abre espaço para Elis se tornar a personificação da “canção dos anos de abertura” (1975-1982). 

 

Embora não tenha sido intencional, essa transferência simbólica interessava à própria gravadora Philips, que, ao longo da ditadura militar, manteve no seu catálogo um espaço específico para uma voz política feminina. Ao lado de nomes como Maria Bethânia, Nara Leão, Chico Buarque, Caetano e Gil, as duas cantoras integravam a “faixa de prestígio”, ou o selo azul, da empresa, enquanto outros artistas como Odair José, Macos Pitter e Evaldo Braga faziam parte da “faixa comercial”. Diante da ampliação do mercado consumidor da MPB na década de 1970, a Philips reservava a essa voz política feminina o papel de sedimentar e suprir a demanda de consumo da classe média engajada.

 

Porém, Elis teve um pouco mais de trabalho do que Gal para ser aceita por esse público. Além de ter participado do Nacional-Popular, um movimento musical mais conservador que acabou se tornando antagonista do Tropicalismo, a cantora gaúcha teve uma posição política confusa aos olhos da plateia durante os anos de chumbo. Ao mesmo tempo em que dizia que o Brasil estava sendo “governado por doidos varridos”, durante viagem à Holanda em 1969, também participava do evento militar para celebrar o Sesquicentenário da Independência, em 1972. Como primeiro recorte político sobre Elis, o livro revela vereditos inéditos da censura e comprova, através de relatórios, que a perseguição sistemática à cantora começa a partir dessa declaração na Europa, o que a leva a acatar alguns pedidos dos militares por receio de represálias.

 

“Foram trajetórias de altos e baixos, porque tiveram momentos de maior consciência política e de ‘neutralidade’. As duas foram cobradas em determinado momento acerca de suas posturas. No caso de Elis, ela era primordialmente uma operária da canção, isso quer dizer que a classe social dela sempre afetou muito a sua trajetória. Ela dizia que tinha que dar certo como cantora, porque não tinha outro caminho, por isso ela era movida por esse desejo de estar sempre no topo e ser a melhor. Ser neutra para dar certo talvez fosse importante para ela naquele momento. Mas, quando ela começa a ser acusada de ser conivente com o regime – o que ela não era –, ela começa a revolucionar a própria carreira. Ela muda o repertório, os compositores, os arranjos, os shows, os discursos e a interpretação, que passa a ser mais séria, elaborada, tensa e densa”, observa Contente. 

 

Essas mudanças ficam mais evidentes a partir de Falso brilhante (1976), em que Elis começa a desenvolver uma linguagem engajada pela redemocratização do país, sendo sucesso de público e crítica. Talvez buscando reparar os erros do passado, a cantora é bem mais enfática do que Gal dali em diante, reafirmando seu papel como ativista política. Entre suas ações, Elis financiou a primeira revista feminista nacional, cantou em greves no ABC Paulista e fez shows gratuitos pela volta do voto direto. Falecida em 1982, aos 36 anos de idade, ela viveu uma vida curta, mas suficiente para ainda hoje ser considerada, por muitos, a maior cantora do Brasil. “Não se assuste, pessoa!” mostra que essa alcunha vai além do preciosismo técnico e se deve também à personalidade por trás da voz. 

 

Se a grandiosidade artística não é sobre conquistar a unanimidade do público, mas sobre, antes, representar um povo, Gal também permanece gigante. “Ela reformula o discurso, especialmente depois do Recanto (2011), e volta ter um posicionamento público contra o governo Bolsonaro, por exemplo. Nesse momento pós-Recanto, ela se reconecta com a sua fase mais militante e faz um movimento coeso”, comenta o autor. A cantora tem a experiência de quem já viveu muito Brasil para saber que são as atitudes, e não os números de seguidores, que fazem história. 

 

CAMILA ESTEPHANIA é jornalista cultural.

 

 

Fonte: Revista Continental