Em seis meses de quarentena, SP vive o luto da perda de até 75 mil bares e restaurantes

24/09/2020


Em frente ao muro do cemitério da Consolação ficava o restaurante La Frontera.

A fronteira era um recurso poético. Representava, na identidade cultural, o limite difuso entre a Argentina natal de Ana Massochi, a dona, e o Brasil que a acolheu há mais de quatro décadas.

A cozinha navegava ao longo de outra fronteira: a da alta gastronomia com a culinária rústica, do fogo. É a escola de dois célebres patrícios de Ana, os chefs Francis Mallmann e Paola Carosella.

A imagem fronteiriça se evidencia na situação física do restaurante. A rua Coronel José Eusébio divide os mortos do cemitério e os vivos que celebravam a própria finitude com berinjela defumada, lulinhas ao alho, nhoques macios, bifes, galetos, doce de leite e muito vinho. É a graça doce-amarga do humor argentino, sempre brincando com aquilo que apavora.

Num ano em que a morte passou dos limites, o cantinho de Ana Massochi cruzou a fronteira para o lado de lá. Ele é um entre dezenas de milhares de restaurantes fechados definitivamente em exatos seis meses de quarentena oficial no estado de São Paulo.

As baixas se acumulam desde 24 de março, quando um decreto do governador João Doria (PSDB) restringiu o funcionamento do comércio, devido à pandemia da Covid-19.

Os dados, ainda que imprecisos, impressionam: nestes seis meses de quarentena, entre 20% e 25% dos estabelecimentos de alimentação encerraram as atividades no país. Quando transposto para o contexto estadual, o levantamento aponta de 50 mil a 75 mil restaurantes, bares e lanchonetes paulistas mortos por falta de faturamento.

O luto não é metáfora para os empresários do setor. Emparedados por dívidas, consternados com a demissão de funcionários e abatidos pela derrota, eles tentam superar as perdas.

“Prefiro deixar quieto agora”, responde o chef Raphael Despirite à solicitação de entrevista sobre o fechamento do Marcel. O restaurante francês, aberto há 65 anos pelo avô de Rapha, servia o suflê mais famoso da cidade.

Outros pontos tradicionais também pereceram na pandemia. O espanhol PASV, desde 1970 na avenida São João. O árabe Abu-Zuz, há 31 anos no Brás. O próprio La Frontera já contava 14 anos de estrada. O velho Itamarati, no largo de São Francisco, balançou, mas não caiu: após a casa anunciar o fechamento, advogados frequentadores se engajaram numa campanha para resgatá-la.

A peste baixou inclemente também sobre os restaurantes jovens com nomes inspirados na fauna brasileira. São Paulo perdeu o Capivara, excelência em peixes num salão de boteco da Barra Funda. Foi-se o Cateto, que transferiu da Mooca para Pinheiros o combo queijos artesanais + charcutaria + cervejas especiais + coquetéis.

Havia apenas seis meses que Leo Botto tocava o Boto —com um tê só— quando a pandemia virou o mundo de ponta-cabeça.

“A gente ainda estava engatinhando”, conta o cozinheiro e empresário. Acabrunhado, ele admite que o amadorismo contribuiu para o fechamento da casa. “Fico até com vergonha de dizer que contratamos 25 funcionários para a abertura.” O Boto tinha 50 cadeiras no salão, 25 lugares no bar e nenhum sócio com currículo em gestão de restaurantes.

No afã de salvar o negócio, Botto trabalhou até como entregador. Pegou Covid-19. “A exposição era extrema”, lembra. Ele teve todos os sintomas clássicos do coronavírus, mas conseguiu se recuperar sem internação. Assim que o governo permitiu a reabertura, ele reabriu. “Estávamos completamente descapitalizados. Não funcionou.”

Já Ana Massochi —que revelou Botto no La Frontera— não pode colocar o revés na conta da inexperiência. Desde 1980 ela está à frente do Martin Fierro, o argentino que assistiu impávido à playboytização da Vila Madalena. Na pandemia, ela percebeu ser inviável manter os dois restaurantes.
“Precisei escolher um deles”, conta. Optou por fechar o filho mais novo porque a operação era cara, apenas se pagava.

A gota d’água foi a postura draconiana dos donos do imóvel, que se recusaram a negociar o valor do aluguel. Ainda em março, Ana decidiu abreviar o capítulo La Frontera e doar os equipamentos para um café comunitário na Vila Brasilândia. “Baixei a cortina e comecei a olhar para o outro lado.”

A asfixia financeira é a principal queixa das duas entidades que representam o setor: a Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes) e a ANR (Associação Nacional de Restaurantes).

A primeira tem associados em cada boteco de cada cafundó do país; a segunda reúne a elite da categoria, empresários com dinheiro e influência. São elas as fontes dos números apresentados no começo do texto.

Ambas as associações reclamam do governo e dos bancos, que prometeram crédito e não entregaram. Ambas lamentam também a manutenção, ao cabo de seis meses, da ocupação e do horário restritos —em São Paulo, os restaurantes podem funcionar até as 22h, com 40% da capacidade.

“Vai quebrar muita gente ainda”, estima Percival Maricato, presidente da seção paulista da Abrasel. “Mais de 40% dos empresários não resistem a outro ano de recessão. E tudo aponta para isso.”

A aflição é compartilhada pelos grandes do setor. “Das redes de restaurantes, 40% precisaram fechar pelo menos uma unidade”, afirma Cristiano Melles, presidente da ANR. Estão na lista a IMC (das marcas Frango
Assado, Pizza Hut, KFC e Viena) e a CTC (das pizzarias Bráz, Lanchonete da Cidade e bares Pirajá e Astor).

A rede Galeto’s, cujos restaurantes pontuavam a paisagem urbana em São Paulo, encerrou o atendimento presencial em todas as lojas. Os franguinhos agora só viajam de moto para a casa do freguês.

“O delivery veio para ficar”, diz Percival Maricato. A verdade, porém, é que ninguém tem a mais remota ideia do futuro próximo. Planos abundam.

Raphael Despirite, taciturno em relação ao Marcel, se empolga ao falar da mistura de experiências digitais e físicas no projeto Fechado para Jantar. “Nos últimos que fizemos, tivemos lives com as pessoas recebendo a comida em casa.”

Leo Botto pretende recomeçar pequeno, numa casa para uma dúzia de clientes, e servir cogumelos selvagens colhidos nas ruas de São Paulo. Sim, é isso que você leu —e eu mal posso esperar para provar.

Ana Massochi vai seguir concentrada no Martin Fierro, sólido, constante e de empanadas imortais. Levou para lá os nhoques de batata assada, receita surrealmente gostosa que Leo Botto criou para o restaurante em frente ao muro do cemitério.

Fonte: Folha de S.Paulo