Suicídio por excesso de trabalho leva à renúncia de empresário japonês

31/12/2016

Em 17 de outubro, todos os funcionários da Dentsu –a maior agência de publicidade japonesa e possivelmente a companhia mais influente do país– receberam uma mensagem de Tadashi Ishii, o presidente da empresa, e ela soava catastrófica.

 

"A maneira aprovada de trabalhar em nossa companhia é inaceitável para todas as partes interessadas, entre as quais as autoridades", dizia o memorando, de acordo com reportagens publicadas pela imprensa japonesa.

 

Vinda um mês depois que a Dentsu foi apanhada em um escândalo de superfaturamento que prejudicou centenas de clientes, e apenas dias depois que surgiram informações sobre o suicídio de uma trainee de 24 anos na agência por excesso de trabalho, a mensagem foi uma admissão considerável.

 

E surpreendeu ainda mais por vir de um líder empresarial que ascendeu e prosperou na cultura empresarial que ele mesmo descreveu negativamente no comunicado.

 

Esta semana, Ishii, 65, foi um passo além. Assumindo a responsabilidade pelo suicídio de Matsuri Takahashi, o presidente anunciou sua renúncia, em meio a investigações policiais nos escritórios da empresa e ao feroz debate público sobre os perigos mais amplos da cultura japonesa de trabalho excessivo.

 

Em uma soturna entrevista coletiva, ele admitiu que a cultura da Dentsu era a de não recusar trabalho, não importa o quanto a equipe da agência estivesse sobrecarregada. "Tudo que se referia a isso", ele disse, "era excessivo".

 

Ao assumir o comando no começo de 2011, Ishii liderou a transformação de uma empresa cujo domínio sobre o mercado publicitário japonês era alicerçado pelas expectativas notoriamente inflexíveis quanto ao esforço de sua equipe.

 

Foi Ishii que comandou a aquisição da Aegis, uma agência de publicidade britânica, por 3,2 bilhões de libras, em 2013 –uma transação que transformou a Dentsu em uma operação verdadeiramente internacional–, e uma sequência firme de aquisições internacionais posteriores.

 

Ele também estava à frente da situação quanto a Dentsu reconheceu que seu domínio sobre o mercado japonês de publicidade televisiva não promoveria o crescimento em longo prazo, o que levou à concepção de uma estratégia digital.

 

Mas manter as tradições de jornadas de trabalho fatigantes, entretenimento suntuoso para os clientes, devoção total à causa e agressividade incansável nos negócios, dizem atuais e antigos funcionários, era visto como essencial para a transformação da companhia, e Ishii estava em comando direto do processo.

 

Importantes figuras do setor, ressaltando a conhecida proximidade entre Ishii e o partido governante japonês e o papel central da Dentsu na olimpíada de Tóquio em 2020, sugeriram que sua renúncia pode ter acontecido com a aprovação tácita do primeiro-ministro Shinzo Abe, cujo governo está desesperado por se apresentar como simpático aos trabalhadores e sofreu embaraços devido aos escândalos em seu importante aliado empresarial.

 

No entanto, mesmo de saída e enquanto sua empresa passava a ser retratada como mau exemplo de despotismo empresarial e trabalho excessivo, Ishii não conseguiu evitar uma ponta de orgulho em sua admissão de culpa. A Dentsu, ele afirmou, exigia "120%" de seus funcionários.

 

A afirmação veio de um líder empresarial que passou a vida trabalhando para atingir essa porcentagem impossível. Ishii –avesso à mídia, calculadamente discreto mas um homem supremamente bem relacionado nos escalões superiores da política e dos negócios japoneses– nem sempre foi considerado como o herdeiro perfeito para o império Dentsu.

 

Atípico desde o começo, Ishii promoveu agressivamente a transição internacional e digital da Dentsu sem se deixar dominar pelos tabus e tradições da empresa, de acordo com pessoas que trabalharam com ele.

 

Sua indicação em 2011 chocou os clientes da agência, já que ele foi o primeiro presidente-executivo a vir das operações de atendimento e marketing no mercado japonês. Desde a fundação da Dentsu, em 1901, pelo correspondente de guerra Hoshiru Mitsunaga, como agência de notícias e publicidade, os 11 predecessores de Ishii no posto fizeram carreira inicialmente na publicidade jornalística, uma excentricidade duradoura adotada para satisfazer as duas maiores agências de notícias japonesas –Kyodo e Ijii–, que eram as maiores acionistas da Dentsu.

 

Os analistas dizem que a escolha de Ishii, que estudou na Universidade Sophia, uma instituição de foco internacional, em lugar das universidades de foco japonês nas quais a Dentsu usualmente recruta seu pessoal, sinalizava as ambições do grupo de se expandir para além de seus tradicionais redutos nos jornais e televisão japoneses e chegar aos mercados externos.

 

Na presidência de Ishii, o faturamento internacional da Dentsu cresceu para 54% das vendas totais de 819 bilhões de ienes (US$ 7 bilhões), ante 18% antes da aquisição da Aegis. A publicidade digital responde por 34% das vendas totais.

 

Isso foi parte do problema, dizem fontes próximas à companhia; o avanço rumo ao exterior e a transição digital expuseram falhas na cultura interna da Dentsu. Ishii por acaso era o homem que estava no comando quando elas foram expostas.

 

Mas apesar de sua aparente disposição de romper com o passado, Ishii era tanto uma criatura da cultura da empresa quanto seu inflexível guardião. A "forma aprovada de trabalho" da Dentsu, dizem analistas, foi especificamente aprovada por Ishii e gerações de predecessores.

 

Ishii, como todos os demais funcionários, aprendeu o modo Dentsu de trabalho por meio de um manual interno conhecido como "Oni Jussoku" –"os 10 princípios do diabo"–, redigido por um presidente da empresa em 1951. A mais notória de suas instruções: "Jamais desista de uma tarefa até que atinja seu objetivo, mesmo que precise morrer tentando".

 

Fonte: Folha de São Paulo