Templo da música e da boêmia, Nova Orleans celebra 300 anos com mais festa

03/04/2018


É como se uma Bahia tivesse florescido no golfo do México. Quem chegar a Nova Orleans vai ouvir um tal "babe" para lá, "darling" para cá —a cidade no sul dos Estados Unidos, com o sotaque mole de sua gente, achou o melhor jeito de chamar o visitante de "meu rei" em inglês.

 

Está lá, como aqui, a mistura de fé e festa. Talvez valha até seguir um conselho que Jorge Amado dava sobre Salvador: ao chegar, jogue uma cachacinha no chão para Elegbara, como eles chamam o nosso Exu, para a estadia correr tranquila.

 

Neste ano, a "Big Easy" —facinha, em bom português— celebra 300 anos, com uma programação que dura o ano inteiro, além dos festivais que acontecem lá sempre.

 

A cidade que já passou o diabo, de uma Guerra de Secessão ao furacão Katrina, em 2005, continua vibrante.

 

O jazz nasceu em Nova Orleans, então quem gosta de música terá muitas opções —desde os artistas de rua tocando em qualquer parte até apresentações à noite.

 

Há a Bourbon Street, epicentro da festa, mas há onde beber e cantar e dançar em todo o Bairro Francês, coração turístico da cidade, com arquitetura colonial.

 

Para não cair em armadilha de turista, um bom lugar é o Preservation Hall, na St. Peter Street. É um palquinho fundado em 1961, em um espaço cheio de bancos de madeira onde cabem cerca de 70 pessoas, sentadas e em pé.

 

A banda oferece uma experiência com o jazz próxima das origens: os músicos tocam instrumentos sem amplificação. Pede-se ao público a gentileza de desligar os celulares e não fotografar, o que todos respeitam. Os shows acontecem todas as noites às 17h, 18h, 20h, 21h e 22h. Coisa fina.

 

Dá para ir da sofisticação à bagaceira em poucos metros no Bairro Francês e encontrar todo tipo de música.

 

Por exemplo, três coisas fazem o Pat O'Briens uma das casas mais famosas do bairro. A primeira é um chafariz de fogo (sim, de fogo). A segunda, sua versão do Hurricane, drink açucarado à base de rum, servido num copo gigante. A terceira, o fato de ter dois pianos no palco.

 

Lá, os músicos só atendem pedidos, por isso é tudo hit. Quando a Folha esteve no local, havia velhinhas bêbadas e platinadas agitando os braços ao som de "Sweet Caroline". É uma experiência antropológica, música de churrascaria, mas com a dose certa de álcool você pode cantar tudo abraçado aos amigos.

 

Antes de ir, vale checar a programação do Museu do Jazz, que faz uns 15 festivais por ano. O acervo, que também merece visita, tem 20 mil itens: fotos, discos, instrumentos de lendas do ritmo.

 

"Vamos tentar fazer um festival de música brasileira em 2018", diz George Lambousy, diretor da instituição, que disponibiliza a maior parte dos seus shows na internet.

 

Pelos 300 anos da cidade, o museu recebe uma exposição de Herman Leonard, lendário fotógrafo do mundo do jazz, entre outros eventos.

 

Foliões podem escolher ir no Mardi Gras, o carnaval de Nova Orleans, quando os krewes —blocos, mas com carros alegóricos— desfilam.

 

Se passar pelo Cork Krewe, em que as pessoas usam fantasias feitas de rolha, você pode conhecer o presidente da trupe, o belga Patrick Van Hoorebeek. É um desses boêmios folclóricos que algumas cidades têm --foi candidato a prefeito em 2017, com o slogan "More wine, less crime" (mais vinho, menos crime).

 

"Pensei em usar 'More beer, less fear' [mais cerveja, menos medo] também", ri ele, que teve 232 votos. "Fiquei em 18º lugar. Ao menos não fiquei em último." Ele é dono do Patrick's Bar Vin, onde se pode beber vinhos, cervejas e drinks.

 

PIMENTA E COMPANHIA

Você vai ouvir a recomendação de ir ao Café du Monde, às margens do rio Mississippi, um lugar clássico que serve o beignet, massa frita semelhante ao donut, com uma montanha —uma montanha mesmo— de açúcar de confeiteiro em cima.

 

Não é nada demais, mas fica aberto 24 horas e pode socorrer o turista que precisar de uma injeção de glicose. Se faltar tempo, pode cortar da programação sem pena.

 

De todo modo, não se decepcione com o beignet —a culinária em Nova Orleans é para se lambuzar. Há duas gastronomias típicas, a cajun (do interior, vinda dos franceses) e a creole (com influência francesa, indígena, africana e espanhola, entre outras). É para quem gosta de molhos e condimentos.

 

Uma boa introdução à culinária local é fazer aula na Nova Orleans School of Cooking. Há a opção em que um professor demonstra receitas, por US$ 30, e outra em que alunos põem a mão na massa, por US$ 139. No fim, há uma loja onde se pode comprar livros de receitas e temperos para tentar em casa.

 

Para almoçar, um dos restaurantes no centro turístico é o Tableau, boa opção para conhecer a mesa local, aqui mais focada em frutos do mar, com ostras, lagostins, caranguejo e camarões.

 

Entre os pratos típicos da cidade, vale provar o jambalaya (espécie de paella), o grits (polenta de milho branco, que pode acompanhar carnes ou frutos do mar), o gumbo (ensopado com feijão e carnes) e o po'boy (sanduíche de carne ou fruto do mar).

 

É uma cidade que convida o visitante a descobri-la a pé. Pode-se visitar a casa em que viveu o escritor William Faulkner, onde hoje há uma ótima livraria, ou o dramaturgo Tennessee Williams.

 

O Garden District, fora do centro antigo, é uma mostra de mansões ao estilo sulista, com jardins e varandas. Lá ficam casas de celebridades como Sandra Bullock e a escritora Anne Rice ("Entrevista com o Vampiro").

 

São ruas arborizadas, com todo tipo de arquitetura, e uma brisa permanente vindo do rio Mississippi.

 

MACUMBA TURÍSTICA

No bairro do Tremé, onde acontecem os festivais de música, pode-se ver onde ficava a antiga Congo Square, local em que os escravos se reuniam para tocar e dançar.

 

Aliás, as dicas oficiais não falarão em escravidão —estranho numa cidade que foi importante ponto do tráfico negreiro. Um ou outro guia dirá que determinada edificação foi construída com a "colaboração" dos negros.

 

Vale ir entrando nas lojinhas de vodu, observar semelhanças da herança africana no continente e encontrar imagens de velhos conhecidos do brasileiro, como Iemanjá, Oxum, Oxalá.

 

Em muitas lojas há um ar de macumba para turista, é verdade, mas é interessante. Alguém sempre vai contar as histórias de Marie Laveau, poderosa feiticeira da cidade, morta no século 19 —e, se der sorte, dizem as más línguas, cruzar com o fantasma dela numa encruzilhada escura.

 

Fonte: Folha de S.Paulo